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O Direito ao Aborto e o Poder do Estado sobre a Vida

Invasão do capitólio ou sintoma de doença na Democracia

Está a ocorrer o debate sobre o alargamento do prazo para a interrupção voluntária da gravidez em Portugal. Este texto não visa apoiar qualquer posição sequer uma opinião pessoal. Pretende isso sim dar um enquadramento algo diferente.

Walter Benjamin, no seu ensaio Zur critic der gewalt, explora o poder do Estado de regular a vida através da lei. Este poder, que se manifesta na imposição de normas e na capacidade de decidir sobre o que é permitido ou proibido, levanta questões profundas sobre os limites da soberania estatal. Colocado em diálogo com as ideias de Jacques Derrida e Judith Butler, este conceito ajuda-nos a refletir sobre uma questão central e polémica: o direito ao aborto, especialmente no contexto do recente debate em Portugal sobre a extensão do prazo legal para 12 ou 14 semanas.

Benjamin argumenta que o Estado exerce o seu poder por meio de uma violência que funda e preserva
a ordem legal. No caso do aborto, este poder é visível na forma como os Estados defi nem prazos e condições, muitas vezes ignorando a complexidade das vidas reais que essas leis afetam. Em Portugal, onde o aborto é atualmente permitido até às 10 semanas por decisão da mulher, o debate sobre a possível extensão tem reavivado discussões sobre autonomia, saúde pública e a interferência estatal na vida privada.

Derrida, ao comentar Benjamin, destaca como as normas legais muitas vezes mascaram decisões arbitrárias e excluem vozes relevantes. Nos debates sobre o alargamento do prazo, esta exclusão torna-se evidente quando argumentos religiosos ou conservadores tentam moldar políticas públicas que deveriam respeitar a pluralidade de visões numa sociedade democrática. A fixação de limites rígidos, como as atuais 10 semanas, pode ser vista como uma forma de controlo que ignora as circunstâncias individuais, como a descoberta tardia da gravidez, o acesso limitado a serviços de saúde ou fatores socioeconómicos que difi cultam uma decisão imediata.

Judith Butler, ao refletir sobre a vulnerabilidade e o reconhecimento, ajuda-nos a compreender como o debate em torno do aborto muitas vezes desloca o foco da pessoa grávida para o feto, tratando o seu corpo como um meio para fins que lhe são externos. Este deslocamento reforça uma violência simbólica que desvaloriza a autonomia e a dignidade de quem vive a realidade da gravidez. O alargamento seria um passo para mitigar esta violência, reconhecendo que as decisões reprodutivas são complexas e exigem tempo e reflexão, sem pressões arbitrárias.

O debate em Portugal não pode ser dissociado de uma luta mais ampla pelos direitos reprodutivos e pela proteção da saúde das mulheres e pessoas grávidas. Garantir a possibilidade de interromper uma gravidez até às 12 ou 14 semanas é mais do que uma questão técnica ou legislativa; é um reconhecimento da diversidade de experiências e da necessidade de assegurar condições para decisões informadas e seguras.

A oposição a este alargamento tende a assentar em argumentos sobre a proteção da vida, mas muitas vezes ignora que restringir o acesso ao aborto não o elimina — apenas o torna mais perigoso. Além disso, como Derrida e Butler nos ajudam a perceber, a imposição de limites legais rígidos muitas vezes serve para perpetuar desigualdades, colocando as pessoas mais vulneráveis numa posição de maior risco e dependência.

Finalmente, a tentativa de alargar o prazo para 14 semanas em Portugal é um teste da maturidade política do país. Após décadas de avanços nos direitos reprodutivos, este debate coloca-nos perante uma escolha crucial: queremos uma legislação que respeite a pluralidade, a liberdade e a dignidade humana, ou queremos perpetuar uma política que impõe valores particulares sobre toda a sociedade?

A decisão não é apenas sobre prazos, mas sobre o tipo de sociedade que queremos construir, onde, de qualquer maneira, os valores intrínsecos à vida não podem ser despicientes.

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