O início da noite dum domingo de janeiro de 1996 marcou-me a vida com um ferrete, como antes se marcavam os escravos. Nessa manhã, tinha feito a minha corrida, porque o stress da vida pessoal e profissional exigiam que descarregasse, no exercício físico, as toxinas e o stress acumulados durante o dia e a semana de trabalho. O exercício físico, que fazia regularmente, mantinha o meu corpo na plenitude dos meus 46 anos (“festejei-os na enfermaria do hospital). De repente, comecei a sentir uma dor forte no centro do peito e fiquei agitado e comecei a andar de um lado para outro dentro de casa. Não fazia a mínima ideia das causas e, como que por instinto, decidi-me por ir ao hospital. Tomei um táxi (não estava em condições de conduzir) e nele fiz o percurso, de poucos quilómetros, da minha casa até à urgência do HSJosé, em Lisboa. Com a dor, colocava a mão no peito do corpo dobrado e foi perante este estado que o próprio empregado da receção de doentes daquele hospital me deu “via verde” para entrar de imediato para o banco, enquanto a minha acompanhante procedia ao registo. A equipa médica de serviço, fez logo o diagnóstico e, ato contínuo, comecei a ser injetado com a medicação recomendada para o meu estado clínico. O diagnóstico era um enfarte agudo do miocárdio (EAM), coisa que eu, como alguns milhões de portugueses, nem imaginava o que era e muito menos as causas e as consequências. Sobre “ataque do coração”, muitos de nós sabemos o que é, bem como a “trombose” (AVC), porque este é visível no corpo, ao contrário do EAM que provoca lesões internas (nas coronárias, que são a causa, por entupimento, no musculo do coração, o miocárdio, onde se verifica a morte ou apenas de parte das suas células). Questionava-me e questionavam-se os meus amigos, porquê a mim, se: “eu não fumava, se fazia desporto, se tinha o peso ideal, se era cuidadoso na alimentação, etc, etc”? Depois, o calvário que passei, posteriormente, já então transferido para o hospital de retaguarda, o HSMarta, pelo surrealismo de tal situação. Ali fui um joguete no meio das “capelinhas” entre o Serviço de Medicina Geral, em cuja UCI fiquei uma semana, e o Serviço de Cardiologia, onde estas patologias são tratadas. Passei a “cliente” de Cardiologia.
Em abril de 2002, a meio da tarde e sentado na minha secretária de trabalho, voltei a sentir a mesma dor violenta e os meus colegas de trabalho chamaram o INEM (ligaram ao 112) e fui levado para as urgências do hospital da zona, o HSFX. Ali foi feito o diagnóstico de um novo EAM, e em cuja urgência e enquanto me debatia com as dores, fui observador de algo inimaginável, e, no dia seguinte, fui transferido para o HSCruz, em Carnaxide, nos arredores de Lisboa, já um hospital de referência em Cardiologia (ali foi efetuado o primeiro transplante de um coração) para onde já tinha começado a ser assistido em Cardiologia. Porquê, um segundo EAM, a pergunta a fazer a mim mesmo e aos médicos?
Naquele intervalo de seis anos, entre o primeiro e o segundo EAM, a terapia deste tipo de doença tinha evoluído bastante, e continua a evoluir, e o tratamento pela via da angioplastia (vulgo cateterismo) foi-me feito em plena Sexta-feira Santa. Na segunda-feira seguinte, estava de saída do HSC, para regresso a casa e depois ao trabalho, ao contrário do primeiro, no HSMarta, onde estive…cinco semanas internado, em medicina geral, até efetuar um segundo cateterismo. Dois meses depois, tive uma recaída, mas, dessa vez, tudo foi diferente, porque recorri ali ao médico e fui internado em Cardiologia e fizeram-me mais dois cateterismos numa semana e a colocação dum primeiro stent e, posterior alta.
Por que conto esta história e ainda por cima “chata”, perguntarão aqueles que ousarem começar a lê-la? Em primeiro lugar porque, a partir de janeiro de 1996, não me canso de alertar as pessoas para os chamados fatores de risco que poderão levar a um EAM e as consequências, se persistirem nesses erros ou negligenciarem os sintomas. Sendo as doenças cardiovasculares (EAM e AVC) a principal causa de morte no nosso país, as autoridades de saúde e muitas ONGs ligadas à saúde, desenvolvem campanhas de sensibilização e ações para que os cidadãos tudo façam para evitarem ser vítimas deste tipo de doença. Por exemplo, campanhas de alerta para os sintomas EAM e de AVC e de sensibilização para que as pessoas atacadas com os sintomas de EAM e todos aqueles que os rodeiam (familiares, amigos ou colegas), devem AGIR, com rapidez, porque o tempo que medeia entre o episódio e a assistência médica adequada pode significar a distância entre a vida (sobrevivência) e a morte. Muita gente morre por falta de assistência atempada, por culpa própria ou falta de meios, a um enfarte ou AVC, pelo que os responsáveis apontam números que nos devem levar a agir mais rapidamente, naquele tipo de situações. Por exemplo e citando: “A mortalidade associada a um AVC ou a um EAM poderia cair, significativamente, se os doentes chegassem ao hospital num máximo de duas a três horas após o início dos sintomas. O tratamento nesse espaço de tempo pode até abortar o enfarte”. Ou ainda: “80% das mortes por enfarte verificam-se fora do hospital”. É verdade que muitas são por morte súbita e, nesses casos, nada haverá a fazer, acrescento ainda eu. As campanhas vão no sentido de “instigar as pessoas a serem mais rápidas do que um enfarte ou AVC”, mas, o que são os sintomas de enfarte? De acordo com “o INEM, dor no peito de início súbito, com ou sem irradiação ao membro superior esquerdo, costas ou mandíbula, suores frios intensos, acompanhados de náuseas e vómitos são alguns dos sinais e sintomas que podem indicar um enfarte, levando a um contacto imediato do 112”. A falta de força num braço, a boca de lado ou dificuldade em falar, serão sintomas evidentes de um AVC. O problema está em identificar esses sintomas, porque muitas vezes arranjamos desculpas. Por exemplo, a dor na parte superior do estômago é muito semelhante e muita gente morreu porque em vez de agirem e chamarem o INEM (112) resolveram tomar um chá ou beber uma garrafa de água das pedras. As autoridades médicas recomendam ainda que “as pessoas com aqueles sintomas devem ir pelo INEM para o hospital e não pelos seus próprios meios” e não cometerem o erro que eu cometi em janeiro de 1996.
Aqueles que leram este escrito até aqui, já compararam as ocorrências dos meus dois enfartes com os objetivos desta campanha. Em ambos os casos, AGI rapidamente e também fui assistido no mais curto espaço de tempo e até estava perto das urgências hospitalares, o que foi uma grande vantagem. Mas, o que dizer se os agentes da saúde forem negligentes ou não tiverem recursos, como foram os casos recentes que levaram a onze mortes, porque o socorro não chegou a tempo e os pacientes faleceram no local donde partiu a chamada telefónica e se perderam largos minuto? Tristes, muito tristes, foram estes desfechos devido à ineficácia dos recursos do SNS, pelo que os familiares de algumas das vítimas tencionam recorrer para os tribunais. Mas, será que culpa morrerá solteira? As responsabilidades não são exclusivamente governamentais, pelo que as investigações devem ir até as últimas consequências, “doa a quem doer”, para que que não seja sempre o doente a “sofrer a dor maior” e os familiares a “dor da morte”. E os dirigentes sindicais da área da saúde que usam as greves para atingirem os seus objetivos prejudicando os doentes que são a razão de ser das suas profissões. Os doentes acabam por ser uma “arma de arremesso” nas reivindicações e nas lutas sindicais, mas por que recaem os danos nos doentes, o elo mais fraco dessa luta laboral? Será justo que assim seja com frequência? Afinal, quanto vale uma vida humana nas lutas perante os interesses corporativos? Honestamente, sinto medo de que algo me possa acontecer, como àqueles infelizes que pereceram por falta de socorro atempado. apesar de eu viver na Capital, mas que aqui não confino a minha vida. Tenho fé de que todos os agentes da área da saúde não se esqueçam dos doentes nas suas lutas, mesmo nas mais justas. Ou será que ser doente é uma culpa e um peso para eles?