“O futebol é apenas a coisa mais importante das coisas menos importantes”
O fascínio em torno de uma bola levou o homem a criar vários desportos, ainda nos finais do século IX nas ilhas britânicas e em Portugal, os mais antigos clubes foram constituídos nos primeiros anos do seculo XX, muitos deles sobreviventes até hoje. Poucos, dominam o universo futebolístico e noutras modalidades desportivas. Falamos do Sporting, Benfica e do Porto, denominados “os três grandes”, relegando todos os outros para uma escala piramidal até ao pequeno clube de bairro ou de aldeia. Se a religião cristã levava a maioria das pessoas aos cultos na manhã dos domingos, as tardes desses dias eram passadas em torno dos jogos de futebol, desde aqueles entre as equipas dos clubes mais modestos até aos três grandes, o fervor clubístico cresceu, muitas vezes extravasando as fronteiras da civilidade. Era uma segunda “religião” de massas da população, assíduos adeptos e sócios, essencialmente nas classes mais desfavorecidas da população, enquanto a classe média e média alta olhava para o futebol com certo desdém, e que o regime salazarista fomentava como os três “FFFs – Fátima, Fado e Futebol”. Foram surgindo imensos clubes e agremiação desportivo-culturais e o regionalismo e o bairrismo acicatavam paixões em torno do futebol e do clube. A psicologia de massas e de alguns egos, levavam, por vezes, a exageros, embora não passassem de escaramuças que as autoridades policiais resolviam. Com a queda do regime, a religião católica foi perdendo fiéis, mas cresciam outras “religiões”, por exemplo, os festivais de música e outros desportos e o futebol a sofrer grandes mudanças. Perdeu a pureza de muitas épocas e deu entrada a negócios de milhões, para os “grandes”, e a surgirem os investidores(!), através das SADs dos clubes que permitem a entrada a terceiros, deixando o clube-mãe a viver do fervor clubístico que a sociedade desportiva consiga gerar, mesmo que a maioria dos seus simpatizantes e adeptos não se apercebam ou nem liguem que é o seu clube que dá todo o colorido e que alimenta paixões. O fervor em torno dos clubes cresceu, também graças às transmissões televisivas e das várias competições que passaram a fazer parte, sejam nacionais ou internacionais, fazendo com que o futebol domine o espectro desportivo do mundo, porque muitos países onde o futebol não despertava paixões, isso tem estado a mudar e hoje ele pratica-se em todo o mundo. A sus organização e funcionamento assente em instituições multinacionais (UEFA, na Europa e similares nos outros continentes) e acima destas federações e com toda a sua autoridade, a FIFA.
Verdade seja dita que o clubismo é algo irracional, ao ponto de depois de apanhado pela paixão a um determinado clube nunca mais se muda para outro e é frequente haver famílias inteiras adeptas do mesmo clube, pelo que esta paixão clubística se transmite nas famílias, salvo algumas exceções. Viver essa paixão clubística depende de vários fatores, por exemplo, geográficos, idades, etc. Alguns milhares, nos clubes grandes, assistem aos jogos do seu clube no seu estádio e alguns ainda acompanham a equipa nas deslocações, nacionais e internacionais, nos jogos no estrangeiro. Outros limitam-se a ver pela televisão, os jogos, agora com oferta de doses elevadas, ou participar em conversas acerca dos seus clubes, por vezes agressivas e que chegam a levar a homicídios. Coitados dos árbitros de futebol que desde há muitos anos são o bode expiatório duma agressividade, verbal ou física, mesmo nas suas vidas privadas, que são inimagináveis ou só possíveis em situações irracionais e de impunidade. Obviamente que estes cenários se passam mais nos jogos das competições mais baixas da pirâmide das competições dos vários escalões de futebol mesmo nos de crianças e jovens,
Mas falar em paixão e amor ao nosso clube é algo difícil de explicar pelos sociólogos e psicólogos. Faz parte da força de pertença, como outrora foi muito acentuada na religião católica e ainda o é nas religiões onde Estado e Religião se casam. Pelo clube, mais em contexto de vitória, se vivem as maiores explosões de alegria, mas também de tristeza, nas derrotas e nas perdas dos símbolos da sua equipa, sejam jogadores-estrelas, treinadores ou mesmo dirigentes. Pela parte que me toca, adquiri o meu clubismo aos doze anos, quando me trouxeram para Lisboa, para trabalhar, e visitando o meu pai no sanatório do Lumiar parei à porta do antigo estádio de Alvalade e, passando por mim um casal fez o que era muito comum e que era levar para dentro do estádio, como se fossem filhos – cuja entrada era gratuita desde que acompanhados e até cerca dos 14 anos , os miúdos que por ali estavam. Assim vi o primeiro jogo do meu Sporting numa tarde de dezembro de 1962. O vício ou clubismo pegou e mantem-se vivo já lá vão 62 anos. Mais adiante, quando os porteiros já “não iam na fita” e recusava a entrada do “filho”, inscrevi-me sócio do meu Sporting. Depois, o serviço militar de 3 anos, o papel extremamente exigente de estudar e trabalhar e o nascimento dos filhos, tornou-se incompatível assistir aos jogos. Só esporadicamente o fazia e nem jornais desportivos lia assiduamente, eu que comecei a ler o jornal A Bola aos 13 anos e por ela aprendi muito na língua portuguesa e também nos aspetos politico-sócio-económicos dos países aonde os “três grandes” se deslocava nos jogos internacionais, porque os seus jornalistas eram excelentes.
Os jornais desportivos e os generalistas, bem como os diversos canais televisivos são os veículos para alimentar e acicatar o fervor clubístico, não alimentados apenas pelas vitorias, mas muito, demasiado, pelas quezílias e pelos “diz que diz” em torno dos clubes e seus agentes. Criam e alimentam uma chama que satisfaz os seus objetivos jornalísticos e manipulando os adeptos, mesmo os mais arredados da atividade desportiva. Veja-se a quantidade de horas e horas que os meios de comunicas social, todos, têm despendido em torno do treinador de futebol do Sporting Ruben Amorim, ou, um pouco mais atrás de Sérgio Conceição do Porto ou Roger Smith do Benfica. Poderia ser em torno de um jogador, mas desde que os treinadores que no passado de há 50 anos eram pagos a tostões e hoje são pagos a milhões. Ruben Amorim, um jogador formado no Benfica, foi uma pedrada no charco, revelando-se um treinador como eu gostaria que fossem todos, e em todas as modalidades: competentes, educados e com fair play, líderes, bons comunicadores, humildes e defensores do espírito de equipa, porque não são eles que marcam os golos, etc. Singrou muito rapidamente, desde o Casa Pia, ainda sem as habilitações exigidas para treinador na terceira divisão, mudou-se para o Braga e o Sporting acionou a cláusula de rescisão de 20 milhões e ele veio para o Sporting, tirando a equipa de futebol dum “poço” a que o anterior presidente a tinha lançado. Ganhou títulos, cometeu erros, mas cresceu muito. Tinha a equipa com ele, – “para onde vai um, vão todos” – lema e mensagem incutida em todos, e conquistou os adeptos.
Se é verdade que são as vitorias que elevam as equipas e o fervor clubístico, para mim, de certo modo “habituado” aos desgostos do meu clube, ele teria na mesma a minha admiração. Foi, contudo, como um “murro no estomago”, quando soube que, de facto, ele iria deixar o Sporting, ainda nem um terço da época cumprida, aceitando ser treinador do maior clube do mundo, Manchester United, apesar da crise de resultados em que está mergulhado. Como eu, milhares de adeptos do clube ficaram desencantados porque RA conseguiu, não sozinho obviamente, gerar uma dinâmica de vitórias e um reviver de são sportinguismo. Respirava-se uma alegria contagiante que ele próprio considerava, poucos dias antes, ser um treinador privilegiado por estar no Sporting, dizia mesmo não haver outro no mundo com a sorte dele. O ambiente, antes cheio de vida, tornou-se fúnebre, contagiando adeptos, jogadores, etc. Os adeptos mais racionais e humanos entendem que qualquer profissional, seja em que área for, tem o direito de lutar pelo melhor e esse melhor pode ter duas vertentes: projeção da carreira, apesar dos seus 39 anos, idade jovem para um treinador, e possibilidades de realização pessoal e profissional e maior, muito maior salário. Outros mais irracionais, chamam-lhe nomes e desejam-lhe “má sorte” em Inglaterra. Mas, os treinadores passam e o clube permanece vivo nos seus 118 anos de vida e, como disse o presidente, RA fará parte das memorias do clube, tal como o clube ficará na memoria do treinador. Por mim, sinto um misto de tristeza e orgulho. Tristeza porque deixa o meu clube de coração, que lesionado o meu coração não consigo assistir aos jogos, embora no dia da “bomba” tenha assistido, na companhia de jovens herdeiros familiares também do sportinguismo, ao vivo do único jogo com RA a treinador. Sentia-se, no estádio, um ambiente pesaroso. Mas sinto orgulho por ver um dos treinadores que mais admirei nestes 62 anos do meu clubismo, ser reconhecido e aceite na catedral e berço do futebol – a Inglaterra. Na conferência de imprensa que prometeu, logo que ficasse “preto no branco” a desvinculação do Sporting e a ligação contratual ao MU, ele marcou muitos pontos. Foi exemplar tal como foi exemplar a do presidente Varandas. Desejo que ele tenha deixado “escola” para todos os treinadores portugueses.
A loucura é uma doença que associada a outras, mata e o futebol não está imune a essa morte que até nem é tão lenta quanto se julga. Há a “loucura” boa e a má e destruidora e, muitas vezes, sob a capa do clubismo, cometem-se loucuras criminais ou bárbaras.