Muita gente fica escandalizada quando alguém, já com algumas décadas de anos na sua idade, vai à sua história de vida para trazer para o tempo presente relatos de valores, de tradições, de modus de vida, de factos, pessoais ou da vida em comunidade. Afinal, o que é a história e para que serve? A história, mesmo que seja a nossa história pessoal ou familiar, serve, bebendo nela, para nos ajudar a entendermos o nosso presente e dotar-nos com ferramentas para entendermos e expectarmos o futuro. É um ótimo exercício de experiência de vida, de sabedoria e de memórias, tendo, como principal objetivo, legar aquilo que está dentro de nós, pela via da oralidade, ou que tenhamos passado a registos escritos. Nos meus setenta e cinco anos vou tentando deixar algo de mim. Mas regressando à razão da escrita desta crónica, retrocedi mais de cinquenta anos e a certos usos e costumes da nossa sociedade da época, condicionados que estávamos por um regime de ditadura que regulava as normas pelas quais nos tínhamos de reger e, se nos desviássemos, surgiam as penalidades. Por exemplo, os meios de locomoção humana ou animal nas vias públicas, incluindo-se bicicletas, carroças, agora que se incentiva o uso de bicicletas e de vários tipos de equipamentos similares. Nas bicicletas, no ano de 1954 aumentou-se o limite de velocidade dentro das localidades para 60 km/hora, não havendo limite fora das localidades! Parece irónico este limite que só seria atingível em descidas, digo eu, porque nem os ciclistas profissionais atingem esta velocidade em estradas planas. As carroças e aquelas bicicletas eram os veículos dos pobres e, muitos vezes levava carga e mais pessoas. Veja-se o que se passa, por exemplo, em Cuba e outros países, onde bicicletas triciclos têm relevante papel nos transportes. No mesmo decreto-lei, os velocípedes e os carros puxados a animais passaram e precisar de matrícula, como os veículos automóveis já o eram desde 1928. Esta matrícula era efetuada na respetiva camara municipal e era constituída por uma chapa metálica oval com o nome do concelho e o registo numérico simples. Mas também, os condutores tinham que obter a sua licença de condução de velocípedes, sem motor ou com este a não ultrapassar uma certa cilindrada. Esta “carta de condução” também era obtida na respetiva camara concelhia, mas precedida dum exame ligeiro de código, de destreza no uso da bicicleta, só com uma mão, porque a outra teria de ser usada, sempre que necessário, para a sinalização que o ciclista poderia ter de fazer. Ainda tenho a minha que tirei, numa ida de férias, com 20 anos, na sede do meu Concelho (Viseu). Pouco ou nada utilizei, porque andar de bicicleta na cidade de Lisboa, a cidade das Sete Colinas, no final da década de sessenta e setenta não era fácil com as pesadas bicicletas (“pasteleiras”). Mas eram estas “pasteleiras” que eram usadas em diversas profissões, nas forças de segurança e até na I Grande Guerra Mundial. Os Correios de Portugal e a Rádio Marconi, operadoras dos telegramas, nacionais e internacionais, respetivamente, que tinham de ser entregues num curto espaço de tempo, tinham uma equipa de “boletineiros ciclistas” que, muitas vezes para vencerem os declives das subidas das ruas e calçadas, se agarravam aos carros elétricos da Carris.
Enquanto miúdo, na minha aldeia beirã, até aos 12 anos, eram os guardas da GNR, a cavalo, a pé ou de bicicleta, que faziam as rondas, de tempos a tempos, ou o Carteiro que se movimentava numa bicicleta com a sacola das cartas que despertavam a nossa curiosidade e fascínio. Se os agentes, com o seu ar austero e que ficávamos mais longe, já com o carteiro, envolvíamo-lo, rodeando-o, na esperança de trazer correio e novidades. Era o senhor Henrique, figura empática e mítica porque trazia e levava “letras” na sua sacola de couro. Por vezes, nela poderiam vir lágrimas.
Desde que foi descoberta, a bicicleta foi evoluindo e transformou-se no veículo de transportes das pessoas da classe trabalhadora e tiveram aplicações em massa, nas zonas planas do nosso país, mais no distrito de Aveiro, por exemplo, tal como o foi em países sem relevos geográficos acentuados. Era o transporte das massas operárias. A indústria ciclística desenvolveu-se e aumentou a oferta de muitos e variados tipos (em 2019 Portugal foi o país que mais velocípedes produziu – cerca de 2,7 milhões de unidades), com muitos modelos e com multiplicações (mudanças) para mais velocidade e facilidade nas subidas e as bicicletas elétricas, algumas já com uma estrutura de combinação de pedalagem/eletricidade. A oferta foi aumentando e variando levando muita gente citadinas a usar a bicicleta, sem complexos, coisa que não era assim na década de sessenta. Muitas campanhas para o uso deste meio de locomoção e dos seus benefícios, faz com que não pare de crescer o número de utentes, até porque foram sendo criadas vias específicas (ciclovias) e alterado que definiu regras para os ciclistas.
Mas, vejamos o que o código estipula, destacando alguns dos pontos: i) “Os condutores de velocípedes devem ser portadores de documento legal de identificação pessoal”; ii).” Deixa de ser proibido às bicicletas circularem em pares…”. iii) “Os velocípedes passam a ser equiparados a automóveis ou motociclos no que diz respeito à regra da prioridade”. Mas como assim, se eles também circulam pelos passeios, nas vias em contramão, atravessam nas passadeiras, etc? iv) “Os ciclistas deixam de estar obrigados a circular nas pistas que lhes são destinadas, podendo fazê-lo juntamente com o restante trânsito”. Afinal podem andar por todo o lado, porque “não há rei nem roque”. v) “Dentro das localidades, os velocípedes passam a poder usar toda a faixa de rodagem, …”. Mais uma situação que não se compreende, até porque circulam pelo meio e se o automobilista desejar ultrapassar não sabe o que ele vai fazer, porque não fazem qualquer sinal de mudança de direção. vi) “Desde o anoitecer ao amanhecer, ou sempre que as condições meteorológicas tornem a visibilidade insuficiente, os velocípedes devem circular com utilização dos dispositivos de iluminação e refletores”. Esta exigência é frequentemente violada, principalmente pelos ciclistas das entregas ao domicílio (UBER) que até roupa escura usam. vii) “A carta de condução não é obrigatória. Porém, o conhecimento do Código da Estrada é aconselhado”. Será que conhecem esses elementos fundamentais? viii)” As trotinetas com motor, são equiparados a velocípedes e as chamadas bicicletas elétricas também”. ix) “Obrigatoriedade do uso de capacete nas bicicletas, com ou sem motor, a motor ou trotinetas? A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) esclareceu que o capacete não é obrigatório nas bicicletas e trotinetas elétricas. Como é possível que este ponto tenha sido deixado ao critério do condutor? E uma questão de segurança de vital importância para eles. Se até às crianças obrigamos que usem capacete, por que não impor o uso a quem circula nas vias publicas? A viver em Lisboa, e utilizando o automóvel quase diariamente, essencialmente dentro da cidade, confesso que me causa um elevado stress pela indisciplina dos agentes que “coabitam nos espaços viários”, incluindo os peões cujos comportamentos são indescritíveis. Tenho medo de vir a envolver-me em acidentes com atropelamentos ou feridos, apesar de todas as cautelas, porque podem causar-me danos na minha saúde cardíaca. Mas já experienciei e “doeu-me”: a) fiz a sinalização para aceder ao parque de estacionamento duma grande superfície e, num repente, oiço um estrondo. Afinal, era um “motard” das entregas “UBER Eats” que tentou ultrapassar-me ainda por ali, mas calculou mal e bateu no parapeito de acesso à rampa e caiu (usava capacete obrigatório). Contudo, e na queda, bateu na parte lateral dianteira do meu veículo. Fiquei enervado, com risco para a minha saúde. Não falava português (se não falava português, como pôde ele obter a carta de condução exigida para a condução de veículos motorizados?) e, a meu pedido, mostrou-me o título de seguro (antiga carta verde). Não sabia o que fazer e, porque os danos na minha viatura não eram de grande monta, disse-lhe para se ir embora. Recomendei-lhe que fosse ao hospital se sentisse dores no pulso e braço de que se queixava. b) Noutro exemplo, preparava-me para virar à esquerda e tendo feito a sinalização e já com o carro meio atravessado e em manobra, vejo um jovem a ultrapassar-me com uma bicicleta camarária. Por agilidade de ambos, não colidimos, mas apanhei um susto grande. c) Há também os condutores de veículos “TVDE” que violam, frequentemente, as regras de condução. Assustam-me e faz-me lembrar aqueles vídeos que circulam por aí sobre o transito caótico na Índia e noutros países de que agora vêm muitos velocípedes e condutores. Nesta selva que é a circulação nas cidades, mas também nas estradas, como condutor não me sinto um rei Leão, mas sim um gato assutado e de pelos eriçados. Como peão, que todos nós somos, apesar dos meus redobrados cuidados, tenho medo. Os atropelamentos mortais, cujos números nos envergonham, devem questionar-nos acerca das verdadeiras causas, nem sempre de exclusiva responsabilidade dos condutores, porque muitos ocorrem fora das passadeiras. Falta de civismo, educação e autoproteção dos peões é algo que deve ser trabalhado por todos nós e pelas autoridades, sob pena de contribuirmos para a estatística da vergonha: as mortes em acidentes rodoviários. Assobiar para o lado, muito característico nosso? Não.