Todos nós podemos eleger uma primeira viagem que tenhamos efetuado na nossa vida, que nos marcou, mesmo que seja uma simples ida a Cacilhas no velhinho barco “cacilheiro”, quase em vias de extinção. Para os não lisboetas, não familiarizados com esta expressão, direi que significa fazer uma viagem, de passeio, juntamente com os milhares de pessoas que os usam, diariamente, como meio de deslocação para e dos seus locais de trabalho, e atravessando o rio Tejo, de Lisboa a Cacilhas, no lado sul. Também os turistas, nacionais e estrangeiros, gostam de fazer esta viagem de cerca de dez minutos e que permite, desde o rio, desfrutar duma imagem panorâmica da cidade de Lisboa, principalmente grande parte da sua extensão ribeirinha. Pessoalmente e mais do que eleger “a viagem da minha vida”, o que pretendo trazer à memória é a minha primeira viagem de comboios, digo comboios porque a viagem incluiu três e também uma viagem de barco, eu que nunca tinha visto o mar, mesmo que fosse o “mar da palha”, onde desagua o nosso principal rio, o Tejo, no início dos anos sessenta, mas não foi uma viagem de família, apesar dos meus onze anos!
Ao tempo, a escola primária ensinava variada matéria da geografia do país, tal como as serras, os rios, as linhas dos caminhos de ferro, hoje muitas desativadas, etc, etc.
Até ao 25 de Abril, a escola primária usava como matriz do território as linhas férreas e ramais que as crianças não só eram obrigadas a saber de cor como apontar e explicar no mapa do país, que estava cheio de riscos de várias cores, dentre eles as linhas férreas, compostas pelas linhas principais (linha do Norte, de Lisboa ao Porto; linha da Beira Alta, da Figueira da Foz a Vilar Formoso; linha do Sul e Sueste, do Barreiro a Faro; linha do Douro, do Porto a Barca de Alva, etc) e os Ramais, de menores percursos e de ligação às linhas principais e, normalmente, de “via estreita” (entre os carris) e aproveitando os percursos dos rios (tal como o Douro na linha do mesmo nome e do Tejo, na linha da Beira Baixa) por cujas encostas serpenteavam: por exemplo, dos muitos, a linha do Vouga (rio) de Viseu a Espinho; linha do Dão (rio) de Viseu a Santa Comba Dão; linha do Tâmega (rio) da Régua a Chaves; linha do Tua (rio) do Tua a Bragança; linha do Sabor (rio) do Pocinho a Duas Igrejas, lá bem no nordeste do país, etc, etc.
Foi assim que eu, nascido e criado numa aldeia de ruralidade profunda, à época, mas hoje já não é assim, apesar de distar apenas uma dezena de quilómetros da capital de distrito, iniciei a minha primeira viagem de comboio, julgando eu que, quando ouvia falar em caminhos de ferro, pensava que eram como que “estradas de ferro” em vez de alcatrão.
Afinal, algo que havia aprendido na escola, ensino concluído poucos meses antes, eu iria aplicar na realidade duma amostra de viagens de comboio. Embarquei, com onze anos e em outubro de 1961, feita a instrução primária de 1957/61, “rumo ao sul” ou, melhor, “rumo ao inferno”.
Assim, de Viseu a Santa Comba Dão (SCD), pelo ramal do Dão, com comboios de linha estreita e puxados por locomotivas a carvão e com carruagens de madeira, com as faúlhas a entrarem pelas janelas. As muitas paragens e apeadeiros servidos pela linha e outras paragens para meter carvão e água na locomotiva, tornavam a viagem daquele percurso, de cerca de cinquenta quilómetros, numa “eternidade de tempo”. Depois, apanhar o comboio da Linha da Beira Alta (vindo de Vilar Formoso), com carruagens acopladas na estação da Pampilhosa ao comboio provindo da cidade do Porto na Linha do Norte até Lisboa, estação terminal de Santa Apolónia.
O fumo e a sinuosidade da linha do “ramal do Dão” deram-me a volta ao estômago levando-me a “expelir” os bocaditos do farnel da viagem (broa de milho e coelho) que a minha mãe meteu dentro duma saca de pano. Situação embaraçosa, ocorrida já dentro da carruagem, parada ainda em S.C. Dão e abarrotada de gente, pois o comboio era um dos principais meios de deslocação, porque sair da carruagem para ir ao fontanário ali existente, tal como era habitual em muitas das estações do país, lavar as mãos, que foram o recipiente que segurou os “detritos gástricos”, foi uma situação de risco, pois o comboio poderia iniciar a marcha e eu ali ficaria apeado juntamente como o meu “camarada do rancho”, dois anos mais velho do que eu. E já era de noite.
Mas, felizmente, regressámos ao assento e a viagem prosseguiu, noite dentro, até Lisboa. Depois, fazer o transbordo, a pé, para a estação fluvial Sul e Sueste, no Terreiro do Paço, hoje maravilhosamente recuperada e que preserva o seu historial, que, por barco dos “CP, nos levava até à estacão ferro-fluvial do Barreiro; ali, matei o largo tempo de espera, encostado ao paredão do cais fluvial, mesmo ao lado da estação de caminho de ferro, hoje feitas ruínas, como muitas são as ruínas do anterior tecido ferroviário do país (estações e apeadeiros em ruínas e abandonados, etc) e a observar a imensidão da água que ondulava e, fechando os olhos, me transportava numa onda.
Mas, afinal, esperava-me uma nova viagem, isto é tomar o comboio da Linha do Sul até à estação/apeadeiro de Canal Caveira, no concelho de Grândola, povoação tornada famosa quando os portugueses “descobriram” o Algarve e por ali faziam uma paragem para se deliciarem com as iguarias alentejanas, num percurso de cerca de cem quilómetros.
Era já noite e ainda faltava fazer a “viagem” de cerca de dois quilómetros, em cima do atrelado dum trator agrícola até ao monte da herdade alentejana onde e o meu “rancho de ratinhos e um capataz” iria ficar “alojado no quartel” (era assim que o chamavam), constituído por uma construção térrea composta por duas camaratas – tal como na tropa – e no centro uma cozinha rural com lareira e uma mesa ao centro, em pedra. Na camarata e com estrados de madeira corridos e com colchões de palha de arroz, dormíamos nós, os quatorze “ratinhos do rancho” expulsos dos casebres maternos algures a mais de quatro centenas de quilómetros, em plena Beira Alta. Uma viagem que demorou mais de 24 horas!
Todos os dias, porque a herdade era atravessada pela linha do comboio, tal como pela estrada nacional, eu via passar vários comboios, de passageiros, de mercadorias e outros, muito compridos nos seus “wagons” de minérios extraídos nas minas de Neves Corvo com destino à cirurgia nacional, no Seixal, pela linha do Sul admirando a pujança e a velocidade daquelas máquinas poderosas. Durante muitos anos e ainda hoje sou fã dos comboios, mesmo que sejam relíquias ou os modernos.
Mais viagens fiz, posteriormente, nalgumas com pequenas “estórias” para contar, mas, psicossociologicamente, a parte mais importante desta “primeira grande viagem da minha vida”, aqui descrita na primeira pessoa, é a razão de ser dela própria. Fica para um próximo artigo, até porque relatarei a permanência do “rancho dos quatorze ratinhos” naquele inóspito cenário alentejano e a viagem de regresso até Viseu, como se fosse um filme visto do final para o início, mas já em pleno mês de junho do ano seguinte. Até lá.
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