Faz um ano que escrevi neste jornal um artigo sobre a dignidade da mentira em Política. Volto ao tema, agora de uma forma ainda mais pedagógica, pois trata-se de um fenómeno que acompanha a história da humanidade, refletindo a complexidade das relações de poder e as tensões entre moralidade e pragmatismo. Desde a Antiguidade, filósofos e pensadores têm-se debruçado sobre o tema, buscando compreender o papel da mentira na governança e suas implicações para a justiça e a liberdade. Façamos um pequeno exercício, com uma espécie de diálogo imaginário entre Platão, Aristóteles, Maquiavel, Espinosa e Hannah Arendt. A ideia é a de nos ajudar a traçar um panorama das diferentes abordagens filosóficas sobre a mentira no contexto político.
Platão, em sua obra “A República”, introduz o conceito da “nobre mentira”. Para ele, a mentira pode ser justificada quando serve ao bem comum, particularmente na manutenção da ordem social e na educação das massas. Na sua visão, a verdade é um bem que poucos são capazes de compreender plenamente, sendo acessível apenas aos filósofos-reis, que têm a responsabilidade de governar. Para esses governantes, a mentira pode ser uma ferramenta legítima para garantir a harmonia e a justiça na pólis. Dessa forma, a “nobre mentira” platónica não é uma traição à verdade, mas um meio de proteger os interesses maiores da coletividade, uma forma de manter a coesão social e a estabilidade política.
Aristóteles, discípulo de Platão, defende uma perspetiva diferente ao enfatizar a importância da verdade e da virtude na política. Para Aristóteles, a vida política deve ser orientada pela ética, e a mentira, por sua natureza, corrompe a virtude. Na sua obra “Política”, ele argumenta que a verdade é essencial para a formação de cidadãos virtuosos e para a construção de uma comunidade justa. A mentira, ao contrário, é vista como um vício que compromete a confiança entre os governantes e os governados, minando a base moral da sociedade. Para Aristóteles, a política deve ser uma expressão da busca pela virtude e pela verdade, não um campo onde a mentira possa ser usada como uma ferramenta legítima.
No Renascimento, Nicolau Maquiavel adota uma postura pragmática e desiludida em relação à política. No seu famosíssimo “O Príncipe”, Maquiavel rompe com a tradição ética dos antigos e defende que a manutenção do poder justifica o uso de todos os meios, incluindo a mentira. Para ele, o governante deve estar disposto a usar a dissimulação e a manipulação quando necessário, pois a eficácia e o sucesso do governo são mais importantes do que a adesão estrita à verdade. A visão de Maquiavel sugere que a política não pode ser regida por preceitos morais absolutos, mas deve ser guiada pela realidade das circunstâncias e pela necessidade de manter o poder.
Baruch Espinosa, no século XVII, oferece uma crítica à mentira na política a partir de sua defesa da liberdade de pensamento e de expressão. No seu “Tratado Teológico-Político”, Espinosa argumenta que a mentira é uma forma de opressão que limita a liberdade dos indivíduos e enfraquece o poder soberano. Para ele, um governo que recorre à mentira para controlar seus cidadãos está fadado ao fracasso, pois a verdade é fundamental para a liberdade e para a coesão social. Espinosa defende uma política baseada na transparência e na verdade, como meio de promover a liberdade e a estabilidade do Estado.
Já em pleno século XX, Hannah Arendt explora a mentira como uma característica central dos regimes totalitários. Arendt argumenta que, em tais regimes, a mentira não é apenas uma prática esporádica, mas uma ferramenta sistemática de manipulação das massas. Ela destaca como esses regimes não apenas distorcem a realidade, mas criam uma “realidade” alternativa que justifica suas ações, tornando a mentira uma parte essencial da política totalitária. Para Arendt, a institucionalização da mentira destrói a capacidade das pessoas de distinguir entre verdade e ficção, corroendo os fundamentos da liberdade e da democracia.
Estes pensadores, cada um em seu tempo e contexto, oferecem visões distintas sobre a relação entre a mentira e a política. Enquanto Platão e Maquiavel reconhecem o uso pragmático da mentira em certos contextos, Aristóteles, Espinosa e Arendt alertam para os perigos que ela representa para a virtude, a liberdade e a verdade. A discussão sobre a mentira na política continua a ser relevante, desafiando-nos a refletir sobre os limites éticos do poder e o papel essencial da verdade na vida pública.