A surpresa eleitoral do dia 10 de março vai ficar como um marco na história política nacional, não por serem uma das eleições mais participadas de sempre, mas pelo clima de incerteza governativo que criaram no país. Pela primeira vez na história da democracia, foi necessário esperar até ao final da contagem geral dos votos para saber quem realmente ganhou as eleições, com os tradicionais partidos de governo, PS e PSD, a ficarem a uma curta distância, com uma diferença de 3-4 deputados*. À esquerda, os partidos perdem força. À direita, mantém-se o tamanho. E é na extrema-direita que surge a grande surpresa: uma representação perto dos 50 deputados.
Quem contacta com o Portugal real, e sai fora da bolha das grandes cidades e dos círculos intelectuais, fechados numa redoma de um país utópico e fantasioso, podia antever que a ebulição que se sentia nas conversas de esquina de rua poderia resultar num desfecho destes. Há um país esquecido, desiludido e entregue a si próprio, sem esperança e sem horizontes, que viu nas urnas de voto um murro na mesa e um grito de revolta. Mas, que análise fazer deste Portugal, que prefere depositar as suas esperanças num partido extremista, populista e demagógico, ao invés dos tradicionais partidos construtores da democracia?
Utilizando um exemplo pessoal. Em Carvalhosa, freguesia de onde sou natural, no concelho de Paços de Ferreira, a AD ficou em primeiro lugar com 944 votos, seguida pelo Chega com 656 e, em terceiro lugar, o PS com 641 votos. Terei mais de 650 conterrâneos fascistas, racistas, xenófobos, homofóbicos, transfóbicos… e outros tantos adjetivos “-fóbicos” que caracterizam o discurso político de um partido de extrema-direita? Não! Conheço bem as gentes da minha freguesia, a sua participação política, cívica e associativa, a sua história e cultura, a sua justiça social e solidariedade, elementos fundamentais na construção e manutenção de uma sociedade democrática. Em Carvalhosa não há problemas de insegurança como existem em outros pontos do país, nem com emigrantes ou etnias, não há ódio ou discriminação sexual, e muito menos a vontade de deitar abaixo um regime para instaurar uma terceira república.
Reconheço sim, nestes 650 votos, um sentimento de desilusão com um país e uma classe política que se afastou das pessoas e da sua realidade. Há aqui a sensação de abandono, de quem espera meses por uma consulta de especialidade ou cirurgia no hospital; de quem trabalha diariamente e vê os seus rendimentos a não serem suficientes para ter uma vida com qualidade e digna; de quem desconta e paga impostos para ter serviços públicos deficitários; de quem vê os seus filhos, que foram estudar e têm uma formação superior, a ter uma vida de dificuldades e a emigrar; de quem procura comprar ou arrendar uma casa, mas sem possibilidades de cumprir os pagamentos. É a voz de quem sonhou com o 25 de abril, acreditou na construção da democracia e do estado social, viveu o projeto europeu… e agora olha para um futuro sem esperança.
Quem se limita a adjetivar estes eleitores como extremistas e radicais, sem compreender o que está na base deste resultado, não compreendeu nada do que aconteceu nestas eleições. É a hora dos democratas, aqueles que acreditam na liberdade, num país onde todos podem ser, viver e estar como e onde realmente desejam, serem chamados a dar a esperança, o sonho e a dignidade a estes portugueses.
Não desistam da liberdade. Não desistam da democracia. Nós não desistiremos de vocês!
* Ao momento da escrita deste artigo, o resultado eleitoral dos círculos da Europa e Fora da Europa era desconhecido.