Sobre as Jornadas Mundiais da Juventude, promovidas pela Igreja Católica, já se disse, praticamente tudo. Independentemente dos argumentos a favor ou contra, há algo, que nesse fervor, une as partes: o plano da Igreja. O que esteve e está, sempre, em causa, apesar de todo o arrebatamento que o evento produziu, é a Igreja, jamais Jesus Cristo.
No sítio da “internet” relativo às JMJ, estas são definidas em quartos curtos parágrafos onde a palavra Igreja surge seis vezes e a palavra Cristo surge apenas 2 vezes, sendo que uma até nem conta, pois refere-se à data adotada que coincide com o domingo de Cristo Rei. Mesmo quando se refere a Jesus Cristo, isso não passa de um eufemismo para Igreja, uma vez que o estímulo para o encontro com Cristo, como é mencionado neste texto, é o Cristo da Igreja e não o Cristo que nos “libertou” ao rejeitar as “tentações” descritas em Lucas 4 -1 a 12.
Esse Jesus Cristo não foi convidado. Na verdade, se aparecesse, seria escorraçado. Estas são, sem dúvida, palavras fortes: a analogia é com a cena do Grande Inquisidor dessa enorme obra “Os irmãos Karamázov” de Fiodor Dostoievski. Ressoam as palavras desta personagem tão marcada pelo humanismo, sublinhando a existência das três forças capazes de vencer e cativar para sempre as consciências dos rebeldes fracos, para a felicidade deles: o milagre, o mistério e a autoridade. Baseiam-se nelas a correção que a Igreja fez ao feito de Cristo, justamente, aquele com que este havia recusado tais forças , dando o exemplo. Não obstante, mais uma vez constatamos o uso dessas forças pela Igreja: nas JMJ, nada faltou, até o milagre.
Cristo, como todos nós, percebeu que o segredo da existência humana não é o de apenas viver, mas ter algo porque viver. Porém, ao invés de se apoderar da liberdade das pessoas, aumentou-a, permitindo-lhes a escolha do bem e do mal. Ciente de que não há nada mais sedutor e, ao mesmo tempo, torturante, para o ser humano, do que a liberdade de consciência, a Igreja aceita suportar essa liberdade. Estende o reino dos céus, que Cristo destinara aos eleitos – os fortes -, aos fracos – os pervertidos e rebeldes. Ao ficar livre, a preocupação mais penosa e constante do ser humano é, precisamente, a de encontrar, o mais depressa possível, alguém perante quem se inclinar. Aí está a Igreja, admirada por suportar essa liberdade que lhe é entregue; organizar a vida de todos os que se submetem como um jogo infantil, com canções em coro e danças inocentes. O amor e fervor que lhe devotam aumenta ainda porque fracos e impotentes lhes é permitido o pecado redimido pela confissão: recorrente nestes dias foi a imagem do local designado para esse ato fundamental.
Esta liberdade, contudo, não basta, há que aceitar o milagre – o ser humano procura mais o milagre que Deus -, como alicerce da esperança, desse medo que enche a alma, sobretudo, nos momentos mais difíceis da vida. Claro, é um mistério, o de que uns são os escolhidos e os outros não. O mistério ensinado como sendo mais importante do que a livre escolha do coração e o amor. O mistério a que todos devem obedecer cegamente, mesmo contra a sua consciência. Tal foi o arrebatamento nas JMJ, que continuam a pulular as imagens da prédica do Papa de uma lucidez que só seria desconcertante, se os ouvintes não estivessem tomados por uma devoção inebriada. Apesar de tudo, o discurso não abandona a vertente do adestramento a que muitos se sujeitam.
Não se julgue, no entanto, que acabam aqui os tormentos cuja mitigação, a Igreja tomou encargo de suprir ao ser humano. Há um terceiro e último: a necessidade da união universal. Esta é uma aspiração, desde sempre, da humanidade. Para a Igreja, isto é essencial na sua ação de convencer de que só será livre quando se abdicar da liberdade a seu favor e a ela submeter-se. Esse fluxo de união, visto e revisto, por estes dias da JMJ, é o rejúbilo de todos – uma afirmação, uma exclamação de orgulho nacional: o orgulho dos fracos.
Por tudo isto, está fácil de perceber que Jesus Cristo não seria bem-vindo e quem esteve presente foi ele, o ele em nome do qual a Igreja age. Mas, já me alonguei demasiado para um artigo de jornal, pelo que concluo, algo abruptamente, afirmando que fraco não significa aqui falta de energia, mas sim, humanidade. Esse traço que nos distingue dos outros seres do universo, portanto, sujeito a tormentos que, mais do que serem mitigados, devem ser aceites no viver de cada um (Jesus Cristo) perante as contingências da vida (Deus). Assim termino a minha “encarnação” de grande inquisidor com referência à filosofia da carne de Michel Henry.