Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
(…)
Ausência de norma. Arbitrariedade. Hipocrisia. Inversão.
Camões na sua esparsa “Os bons vi sempre passar” promove uma reflexão sobre a arbitrariedade e a inversão dos valores fundamentais: a punição dos atos de valor e a gratificação por atos perversos. No entanto, este intemporal tema, que já marca presença na vida do quotidiano há mais de cinco séculos, é de uma atualidade impressionante.
Para além da poesia de Camões, já no teatro vicentino, nomeadamente na “Farsa de Inês Pereira”, estava presente o desconcerto do mundo. No final da peça, a jovem e ambiciosa, Inês Pereira, que apenas obteve a liberdade através do casamento com Pêro Marques, aproveitou-se do excesso de confiança e da ingenuidade do seu marido para o trair com um membro do clero, que deveria eticamente cumprir a abstinência e respeitar o celibato. Sendo assim, esta ação desprovida de valor não é punida e Inês termina por ser gratificada porque, para além de obter a tão desejosa liberdade, é transportada triunfante nas costas do seu marido ao longo de um rio que a conduz ao local do adultério.
Paralelamente, na esparsa “Os bons vi sempre passar”, o desconcerto do mundo é apresentado de uma forma mais explícita e descoberta. Aqui, o confronto entre os tormentos a que os agentes das boas ações são submetidos e o “mar de contentamentos” que os maldosos experienciam coloca a olho nu a injustiça e o capricho. De igual modo, está presente o contraste entre a realidade pessoal e a generalidade, uma vez que, ao saber que os maus seriam recompensados, o sujeito poético também decide seguir este caminho, mas acaba por ser castigado.
Sendo este tema intemporal, será que o desconcerto do mundo ainda se verifica na atualidade?
De facto, o difundir da democracia pelo mundo e a sua implantação em Portugal implicou necessariamente a criação de um sistema judicial que permite averiguar e punir quem efetivamente realiza ações ilegais e eticamente reprováveis, bem como foi necessário criar uma constituição na qual estão presentes todos os deveres e direitos dos cidadãos.
De facto, o desconcerto do mundo é por vezes atenuado. Exemplo disso é o caso da morte de George Floyd pelas mãos do polícia Derek Chauvin que sufocou o afro-americano até à morte com o seu joelho (apesar de George ter suplicado para parar). O ex-polícia foi considerado culpado pelo homicídio tendo sido sendo condenado a 22 anos de prisão. Outro caso que semelhantemente o demonstra é o que abalou Portugal na primavera do ano passado, o caso de Valentina, a criança que faleceu após ser torturada pelo pai e pela madrasta. Os envolvidos foram, no passado mês de maio, condenados, respetivamente, a vinte e cinco e a dezoito anos de prisão efetiva.
Infelizmente, ainda existem casos em que se verifica uma leviandade nas punições aplicadas. Normalmente, esta pequena percentagem de casos está associada a indivíduos que praticam algum tipo de influência na sociedade ou que desempenham algum cargo político, sendo assim transmitida para a maioria da classe média ou baixa a ilusão de que a justiça não é imparcial e que existe uma elite que se encontra acima da lei, que consegue enriquecer ilegitimamente e não ser punida. Esta realidade é confrontada com o “típico pobre português” que mal se desvia da lei, por necessidade ou por outra razão, é imediatamente castigado.
Um dos casos que nos últimos tempos tem abalado a mente dos portugueses é a conclusão da fase instrutória da Operação Marquês, em que o antigo primeiro-ministro José Sócrates, acusado de trinta e um crimes, será julgado apenas por seis deles. Uma vasta gama destes crimes já se encontra prescrito e outros foram anulados por não existirem indícios suficientes para prosseguir para julgamento. Mais uma vez assistimos a assimetrias, o que causou grande revolta na opinião pública. Não será que a falta de conhecimento da população, nomeadamente na área de direito, poderá impulsionar um conjunto de declarações falaciosas?
Em conclusão, o desconcerto do mundo é um tema essencial da lírica camoniana, onde é descrito sem nenhuma censura, ou até na “Farsa de Inês Pereira” em que está presente de um modo mais subtil. Atualmente, com a implantação dos regimes democráticos, a inversão das normas éticas e legais é cada vez menor, apesar de ainda existirem casos em que a parcialidade está presente, gerando grande revolta e discussão. Será motivo para darmos razão a Camões e concluirmos ironicamente:
(…)
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.
Luís de Camões
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